Dentro da Marinha, do Ministério da Defesa e principalmente no Congresso, o “Prosub”, programa de construção dos novos submarinos da Marinha do Brasil, foi aprovado em tempo recorde, especialmente se levarmos em conta que é um contrato de defesa e orçado em quase 6,7 bilhões de Euros, um contrato de valor nada desprezível. O segredo dessa proeza certamente reside não nas quatro unidades de submarino diesel-elétrico da classe S-BR (um Scorpène modificado), mas sim da perspectiva dos franceses da DCNS nos auxiliarem no desenho e desenvolvimento/construção de um novo casco de 6000 toneladas para acomodar o sistema de propulsão so submarino de propulsão nuclear (hoje conhecido como SN-BR) que se encontra em desenvolvimento pela Marinha e pela USP há vários anos.
Muito tem se comentado sobre as várias idas e vindas do programa nuclear brasileiro e particularmente do Programa Nuclear da Marinha, mas muitas lacunas nesta história persistem. Lacunas que são do interesse do aficionado dos temas de defesa, mas que, certamente, pouco interessaria a um leitor leigo casual. Como nossos leitores não são deste tipo, ALIDE tratou de entrevistar o Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, um dos personagens mais centrais, e controversos, desta grande aventura nuclear do Brasil.
Othon se graduou como oficial da Escola Naval no ano de 1960, vindo a trabalhar no Arsenal de Marinha entre 1967 a 1974 em diversas funções incluindo a coordenação da construção dos Navios de Patrulha da Amazônia da Classe Pedro Teixeira, das Fragatas Classe Niterói, das EDVP - Embarcações de Desembarque de Veículos e Tropa e EDCG - Embarcações de Veículos e Carga Geral. Ele também se envolveu na troca do sistema de propulsão dos navios hidrográficos da Classe Taurus, tendo atuado como chefe da Divisão de Metalurgia, Divisão de Oficinas Mecânicas e Eletricidade, Divisão de Obras Novas e Departamento de Construção Naval.
Ocupando atualmente o cargo de presidente da estatal Eletronuclear, Othon controla a empresa que reúne em si toda a construção e operação das usinas nucleares do Brasil (Angra I e II e em breve, Angra III), além de todo o ciclo industrial de produção de combustível nuclear do Brasil. A Eletro nuclear ainda é responsável pela Nuclep - Nuclebras Equipamentos Pesados - uma empresa fabricante de grandes componentes metálicos, criada para apoiar a montagem das nossas usinas nucleares e posteriormente também usada para fabricar os anéis do casco dos submarinos da Classe Tupi e Tikuna fabricados no Brasil.
No seu escritório na Rua da Candelária, no Centro do Rio de Janeiro, curiosamente localizado a pouco menos de 200 metros da entrada do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro onde ele começou sua carreira, o Almirante Othon, ou melhor “Dr. Othon”, como é mais conhecido hoje em dia, nos ajudou a montar este quebra cabeça histórico. Em meados da década de 70, como Capitão de Corveta, quando ocupava a função de Chefe da Divisão de Obras Novas do programa das fragatas da classe Niterói. Justo neste ano, ele foi obrigado a abrir mão de cursar um curso na Naval Postgraduate School, na cidade de Monterey na Califórnia, por ser “imprescindível” na sua função. No ano seguinte, o Almirante Januzzi, então Diretor do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, lhe ofereceu a possibilidade de ser mandado para o Reino Unido para se juntar à Comissão de Recebimento das Fragatas que se encontravam ainda em construção por lá. No entanto, por ter sido solicitado a fazer uma apresentação para uma visita ao AMRJ do vice-presidente da república do Governo Geisel, General Adalberto, Othon, ao procurar transmitir uma visão mais “operacional”, acabou esbarrando num fato “delicado” para a ortodoxia do pensamento naval brasileiro... Já naquela época, os navios de superfície que até a década anterior encarnaram a “dissuasão” no mar pouco podiam contra os novos submarinos de propulsão nuclear. Segundo ele, os próprios chineses naquele momento já haviam identificado esta situação e, sendo assim, priorizaram a recomposição da arma submarina sobre a de superfície. Se a “primeira arma” da Marinha era claramente o submarino, porque nós não seguíamos no Brasil, esta idéia? A maioria dos nossos oficiais que ia estudar nos EUA o faziam através de um convênio que o Brasil mantinha com as forças armadas norte-americanas. Neste caso, não havia qualquer ônus para os brasileiros, mas, em contrapartida, os nossos estudantes eram obrigados a fazer relatórios regulares sobre seu progresso acadêmico para o controle dos americanos.
Quando chegou sua vez, o CC Othon acabou optando, ao invés de seguir suas atividades na Comissão de Fragatas no Reino Unido, por estudar no Massachussets Institute of Tecnology (MIT), um dos mais conceituados centros de pesquisa avançada dos EUA e inusitadamente. Lá ele cursou o mestrado em Engenharia Mecânica e a graduação em Engenharia Nuclear (Master in Science in Mechanical Engineering e Nuclear Engineer Degree) de 1975 a 1978, e não apenas a Engenharia Naval como era mais comum entre seus pares. No dia a dia ele não andava fardado na universidade, mas, de forma alguma ocultava de seus professores e colegas que era oficial da MB da ativa. Além dele, outros três oficiais engenheiros brasileiros cursavam a pós-graduação em Engenharia Naval naquela Universidade. Dentro do MIT existia um escritório da US Navy cuja função era acompanhar o progresso acadêmico dos diversos alunos militares estrangeiros e receber seus relatórios. Este curso, correria sem qualquer centavo de verba do governo americano, tudo seria pago pela própria Marinha. Esta decisão foi tomada para dar maior liberdade e privacidade a ele que desta maneira não estaria suscetível a ter que preparar os tais “relatórios de progresso”. Curiosamente, um ano após sua chegada nos EUA ele recebeu uma carta deste escritório cobrando o seu “relatório”, carta esta (e outras duas posteriores) devidamente ignorada por ele por seu curso não estar sendo pago pelo Military Assistance Program (MAP) americano.
“Neste curso nos EUA ficou claro para mim que não haveria submarino, nem programa nuclear brasileiro, sem que nós brasileiros dominássemos por completo o processo de enriquecimento do Urânio no país. Simplesmente colocando, ninguém nos venderia o combustível para mover o nosso submarino. Focando neste fato, já no meu retorno em 1978 sugeri, como primeiro passo, que iniciássemos um programa para viabilizar a criação de uma ultracentrífuga de desenho nacional. Para montar a equipe a Marinha se associou à Universidade de São Paulo para criar um laboratório dedicado exclusivamente a esta atividade nuclear. A época de ouro deste programa foi certamente no início da década de 80 onde pudemos escolher os melhores talentos disponíveis na USP e na Marinha, unindo a elite dos pesquisadores e orientadores num grande projeto”, disse com um sorriso o Almirante Othon.
Este programa foi aprovado em 8 de março de 1979 e, poucos meses depois, em 4 de setembro de 1982 apresentou seus primeiros resultados encorajadores. “Pode parecer pouco, mas sair dos 0,7% de urânio U235 da natureza para 1,1%, já colocava o Brasil, definitivamente, entre as nações com know how de enriquecimento do urânio. A ciência nuclear não é naturalmente uma atividade barata, mas este primeiro passo brasileiro custou surpreendentemente pouco: apenas US$7 milhões”, disse Othon. Muitos almirantes da engenharia da MB não acreditaram que seria possível este desenvolvimento sem o apoio direto e intensivo de países detentores desta tecnologia. Um memorando interno escrito por um importante almirante explicitamente desencorajava que se seguisse nesta direção, classificando a proposta do Comandante Othon de “uma experiência de caráter duvidoso”. Mesmo assim, a despeito da oposição nada velada, o próprio Ministro da Marinha Almirante Maximiano da Fonseca, optou por bancar a aposta naquele grupo de “loucos”. Além do ciclo de enriquecimento, a equipe do Cte Othon deveria projetar em São Paulo o reator que seria alimentado por aquele mesmo combustível.
Desenvolvido em paralelo, o projeto do submarino nuclear em si, ao menos teoricamente permaneceria aos cuidados da Diretoria de Engenharia Naval no AMRJ. O projeto teria que ser criado do zero para poder receber o reator e o sistema de propulsão criados em São Paulo. Esta separação não era prática o que fez que entre 90 e 91 todo projeto de desenvolvimento do casco fosse transferido para São Paulo, culminando com um total de 163 engenheiros passando a trabalhar no novo Centro de Projeto de Submarinos que foi criado em 1993. O novo Ministro da Marinha, Almirante Serpa, era muito menos entusiasta do programa do submarino nuclear do que seu predecessor e literalmente sentou em cima do pedido de verbas para a criação do prédio do Centro de Projeto de Submarinos por quatro meses apenas para descobrir que usando fundos do Governo do Estado de São Paulo (a USP é uma entidade do governo estadual) Othon já tinha construído e inaugurado ele, antes mesmo de receber a autorização formal da Marinha para iniciar as obras.
Enquanto o programa do sub nuclear andava em São Paulo, a Marinha se debruçava na escolha de um novo modelo de submarino convencional moderno que substituísse os três Oberon e os últimos Guppy III da nossa Força de Submarinos. A disputa estava dividida entre o modelo alemão U209-1400 e o modelo francês Agosta, o AMRJ tendia para o francês porque suas calandras (maquinas de dobrar chapas de aço) eram mais adequadas para os anéis menores do casco duplo do Agosta. Nesta época, numa visita de cortesia à Nuclep para que a MB conhecesse a “oficina mecânica para peças metálicas de alta precisão” na comitiva do Ministro Maximiano. Nesta ocasião, ao ser questionado sobrte suas impressões, Othon acabou comentando que com os equipamentos que a Nuclep tinha ela poderia viabilizar a produção no país dos anéis maiores do casco simples do U209. Nesta mesma época os alemães acenaram para a MB a possibilidade de fabricarem aqui seu projeto maior, o IKL 2000, de 2 mil toneladas de deslocamento. Este casco poderia, na visão dos alemães, ser usado para fazer o submarino nuclear tão sonhado pelo Brasil, mas segundo Othon, ”o IKL 2000 não passava de um fake, um conceito, sem qualquer perspectiva real de entrar em produção”.
No Centro de Projeto de Submarinos em São Paulo dois conceitos surgiram, o SNAC-1 (“Submarino Nacional 1 “... ) e o SNAC-2. Segundo o Almirante Othon: “com o SNAC-1, a MB não objetivava ter um submarino nuclear de ataque no estado da arte, ele seria essencialmente uma etapa intermediária para se chegar ao SNAC-2, o nosso modelo definitivo. “Outra característica peculiar do SNAC é que a variante nuclear seria obtida com a remoção do módulo de propulsão convencional e sua simples substituição por um módulo novo de propulsão nuclear.”Continuou Othon, “num submarino a propulsão, na média, ocupa cerca de metade do espaço disponível no seu interior. Os estudos do SNAC em SP se encerraram em 1994, com a responsabilidade pelo desenho do novo casco retornando para a DEN, no Arsenal de Marinha, no ano seguinte. O projeto em desenvolvimento hoje, com auxilio francês, naturalmente, seguirá adiante a partir do conhecimento acumulado nesta nossa fase anterior. Uma preocupação do time de design do SNAC era que a baixas velocidades não fosse obrigatório o emprego de barulhentas bombas hidráulicas para manter a refrigeração do sistema”.
“Para isso, o projeto fazia uso de ‘circulação natural’ em que as características térmicas e de pressão do circuito termo-hidráulico, automaticamente, puxariam a água do mar para seu interior em total silêncio”. No cento de Projeto de Submarinos de São Paulo as mesas dos projetistas ficavam em salas localizadas ao redor de um hall central onde existia uma maquete em grande escala feita de acrílico transparente que os permitia ver, em 3-D, e determinar a distribuição mais eficiente dos componentes internos a serem instalados no novo submarino. Esta maquete foi construída entre 1992 e 1993.
Naquela época, o Labgene (Laboratório de Geração Nucleo-Elétrica), o reator protótipo construído em terra, era ainda conhecido como RENAP (Reator Naval Potência). Um exemplo do poder estrangeiro de interferir no programa nuclear brasileiro ocorreu no caso do motor elétrico da propulsão. Othon relembrou que “depois de muita negociação as empresas alemãs Thyssen Siemens anunciaram que não mais desejavam construir no Brasil o motor completo. A legislação alemã mudou, o governo daquele país cedendo à pressão americana pela ‘não proliferação’ de tecnologias críticas. Foi neste ponto que a Marinha concluiu que a Alemanha poderia não ser uma ‘fonte tão confiável’ para o programa do nosso submarino nuclear. Na exata mesma época, os alemães também embargaram motores para os veículos lançadores Astros da Avibras”. Sem o motor alemão coube aos engenheiros brasileiros a tarefa de desenvolver dentro da COPESP nosso próprio motor de submarino de 100MW com tecnologia de ponta como a de pólos permanentes e comutação eletrônica. Este tecnologia é ainda usada em alguns modelos de trens de alta velocidade TGV ao redor do mundo.
Para Othon: “está provado que não existe melhor ferramenta para inibir a concentração de força do inimigo no mar do que o submarino de ataque de propulsão nuclear”. Ele continuou, “cada um dos nossos submarinos precisará de pelo menos duas tripulações completas, três até, se houver como. Mas, mesmo se somarmos todo este pessoal, cada um deles ainda precisará de menos tripulantes do que um destróier normal”.
Ao abrirmos por aqui o tema do nascimento do programa nuclear brasileiro, ALIDE espera que este programa, com seus evidentes benefícios tanto civis como militares, possa ser melhor estudado e compreendido pela população Brasileira, servindo de exemplo para outros desenvolvimentos semelhantes de grande porte na área de Ciência e Tecnologia. Esperamos que esse programa pavimente o caminho para uma crescente integração da Academia brasileira com os segmentos industriais e militares. Em breve seguiremos esta história com diversas outras entrevistas relevantes, até lá, não deixe de ler sobre a recente palestra do Almirante Fragelli, atual responsável pelo programa de construção dos submarinos brasileiros junto com os franceses.
Fonte: ALIDE