Mais de 8 mil quilômetros de costa. Quatro milhões e meio de quilômetros quadrados de território marinho. Enormes reservatórios naturais de carbono. Um leito oceânico recheado de petróleo, gás e outras riquezas minerais. A maior biodiversidade de espécies marinhas do Atlântico Sul. E praticamente nenhum navio de pesquisa civil de grande porte para estudar isso tudo.
Esta tem sido a realidade das ciências oceanográficas no Brasil, em especial nos últimos três anos. O lendário navio de pesquisa Professor W. Besnard, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), está inoperante desde dezembro de 2008, por causa de um incêndio, e já pode ser considerado aposentado, deixando centenas de pesquisadores encalhados em terra firme ou limitados a fazer estudos próximos da costa, em embarcações menores.
Uma realidade que está prestes a mudar, com a chegada ao Brasil do Alpha Crucis, um navio oceanográfico de 64 metros e 972 toneladas, comprado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela USP. A embarcação, que já está no Porto de Santos (SP), aguardando os últimos desembaraços legais, tem capacidade para acomodar mais de 20 pesquisadores e autonomia para passar até 70 dias no mar, sem reabastecimento. Bem mais do que o Besnard, de 49 metros, que tinha capacidade para 15 pesquisadores e autonomia de 15 dias.
Sem falar nos muitos avanços tecnológicos do Alpha Crucis, que permitirão aos cientistas explorar águas mais distantes e mais profundas do que nunca.
"Para nós é um momento de glória", diz o diretor do IO-USP, Michel Mahiques. "Um momento de mudança de paradigma, de uma oceanografia quase que exclusivamente costeira para uma oceanografia de grande escala."
"Até agora só fazíamos oceanografia doméstica, perto da costa. Agora temos um navio que pode ir até a África se quisermos", diz o biólogo Frederico Brandini, pesquisador do IO-USP, que coordenará o primeiro cruzeiro científico do Alpha Crucis, previsto para o início do segundo semestre. "Podemos fazer pesquisa de caráter internacional."
Com o Besnard, já desgastado por mais de 40 anos de uso e mais de 600 mil km navegados, as expedições de pesquisa ficavam limitadas a uma faixa de segurança de 200 milhas náuticas (370 km) da costa. Para ir mais longe do que isso, só pleiteando tempo em navios da Marinha ou alugando navios privados - a preços na faixa de US$ 30 mil/dia.
No Alpha Crucis, o custo de operação diária será de US$ 4 mil a US$ 5 mil. O navio, de 39 anos, foi construído especificamente para pesquisa oceanográfica, com quatro laboratórios (um geral, um "molhado", um de química e um de aquisição de dados), vários guinchos e guindastes (essenciais para pesquisas em alto-mar, que envolvem o uso de cabos e equipamentos pesados), e uma série de instrumentos científicos de última geração, incluindo sondas capazes de mapear o leito e o subsolo oceânico.
Outro diferencial importante é o sistema de posicionamento dinâmico, que mantém o navio parado sobre um ponto determinado via GPS, utilizando uma combinação de lemes e hélices de proa e popa para compensar o deslocamento criado pelas correntes e pelo vento.
"Vamos ampliar em muito nossa capacidade logística e tecnológica. Poderemos fazer muitas coisas que não eram possíveis com o Besnard", diz o oceanógrafo Belmiro Mendes de Castro Filho, do IO-USP. "Será um salto qualitativo tremendo."
Abaixo do Besnard, o maior navio de pesquisa do País era o Atlântico Sul, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), com 36 metros de comprimento e autonomia de 25 dias.
Construído em 1973 nos EUA, com o nome Moana Wave, o Alpha Crucis pertenceu por muito tempo à Universidade do Havaí e, mais recentemente, à Noaa, sigla da renomada instituição federal de pesquisa oceanográfica e atmosférica americana. Rebatizado com o nome da estrela que representa São Paulo na bandeira brasileira, ele agora é da USP, mas estará a serviço de toda a comunidade científica nacional.
Seleção. Pesquisadores de outros Estados e instituições poderão submeter projetos para uso da embarcação, que serão avaliados por um comitê gestor e selecionados com base em critérios de mérito científico e disponibilidade. "Interessados não vão faltar", garante o diretor do IO-USP. "Como estávamos sem navio, há um demanda reprimida muito grande. A hora que abrirmos a porta, vai chover pedido."
O que é bom, pois a compra do navio veio acompanhada de grandes expectativas. "Quando o professor Michel nos disse que precisava comprar um navio, eu disse: 'A gente compra, mas vocês vão ter de produzir muita ciência para justificar isso'", contou o diretor científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz.
O navio custou US$ 4 milhões, pagos pela Fapesp, mais uma reforma de US$ 7 milhões, divididos entre a Fapesp (US$ 3 milhões) e a USP (US$ 4 milhões), para adequar a embarcação às normas internacionais de segurança, renovar a infraestrutura e instalar equipamentos.
"Ainda assim saiu barato", garante Mahiques, que passou mais de três anos pesquisando navios e estaleiros ao redor do mundo para preencher o vácuo deixado pelo Besnard. Construir uma embarcação do zero nesses moldes, segundo ele, custaria no mínimo US$ 30 milhões.
Uma cerimônia de inauguração do Alpha Crucis (que já fez uma viagem de 45 dias para chegar a Santos, saindo de Seattle, nos EUA, onde foi reformado) está marcada para quarta-feira. Em setembro deverá chegar a Santos, também, um segundo navio oceanográfico, o Alpha Delphini, com 26 metros de comprimento e autonomia de até 15 dias. Este, novinho em folha, construído do zero em um estaleiro de Fortaleza, por R$ 4,75 milhões (R$ 4 milhões da Fapesp e R$ 750 mil, da USP).
A aquisição dos barcos deixou a comunidade científica entusiasmada. "Oceanografia sem barco não é oceanografia", resume o diretor do Centro de Biologia Marinha da USP (Cebimar), José Roberto Cunha da Silva.